Este álbum é do melhor que se fez e faz na música portuguesa em todos os aspectos, desde a qualidade artística e musical, à sensibilidade, integração, significado, história e qualidade sonora a nível de gravação, mistura e masterização.
Não escapa à regra, sendo do melhor que se faz por portugueses, ter sido feito no estrangeiro. Editado em 1971, foi produzido pelo genial José Mário Branco e gravado por Gilles Sallé no Strawberrie Studio, em França.
É perfeito para ouvir num dia como este, quando recordamos as lutas dos trabalhadores e as conquistas de Abril e lamentamos a sua lenta diluição. Mas o Zeca está lá sempre a lembrar-nos que temos que lutar, que Abril vencerá!
Foi deste álbum que foi tocada, na Rádio Clube, a contra-senha da revolução, a famosa Grândola Vila Morena.
Deixo aqui este testemunho de alguém que não consegui identificar ainda, mas que esteve lá no momento da gravação da música "Chamava-se Catarina", homenagem a Catarina Eufémia, mártir do satrapismo fascista:
« Nascido para, como diz a cantiga, "abrir grandes janelas", o Zeca sempre suportou maio fechamento - quer o das ideias, quer o dos espaços.
Das duas vezes que foi a Paris gravar comigo, em 1971 ("Cantigas do Maio") e 1973 ("Venham mais cinco"), nunca ele escondeu quanto lhe desagradava e o indispunha a necessidade de ficar fechado no estúdio durante horas, e quanto ele não gostava nada de Paris nem do ambiente dos portugueses de Paris - hoje entendo como tinha razão.
Porque haveria de ser preciso fecharmo-nos, horas e horas a fio, na tensa clausura de um estúdio de gravações, se o objectivo era precisamente registar os grandes e puros espaços sonoros das suas melodias, a frescura densa da sua voz, a força simples e lírica das suas palavras? As máquinas! custava-lhe aceitar que a "limpeza" e a "verdade" do som só pudessem ser conseguidas, neste mundo sujo e atravancado, por meio das máquinas, das técnicas, do isolamento acústico. Custava.lhe aceitar que, para fazer chegar aos outros as coisas belas e simples que inventava, fosse preciso tanta guerra para reconquistar o silêncio, a página branca, o patamar vazio donde tudo tem que partir.
Assim, por entre mil episódios que atestam o que acabo de dizer, há esse - o da gravação do "Cantar Alentejano" ("Chamava-se Catarina... ") - que testemunhei aquando da gravação das "Cantigas do Maio", juntamente com a Zélia, o Fanhais, a Isabel Alves Costa, o técnico Gilles Sallé e, naturalmente, o violista Carlos Correia (Bóris). A opção de arranjo foi: só a viola, e a voz do Zeca. Sem rede.
O regime de gravações - tardes e noites - fez que, nesse principio de tarde, fosse a altura de gravar o "Cantar Alentejano", "Vamos a isto, Zeca?", ia eu dizendo, naturalmente preocupado com a factura do estúdio. "Não tens nada para ir metendo?", desconversava ele. Via-se que não estava pronto. "Queres ir metendo outras coisas? Faltam vozes no "Milho Verde" e no "Senhor Arcanjo"... E assim ia passando a tarde. "Está bem, vamos metendo outras vozes". Mas não se conseguia grande coisa. A alma dele - percebi depois - estava toda no Alentejo, nos olhos de Catarina Eufémia. E, como tantas vezes acontecia, andava no estúdio para cá e para lá, em passos nervosos, como o jovem leão na sua jaula.
Até que, já pela tardinha: "Eu vou até lá fora, olhar para as vacas" - o estúdio era numa quinta apalaçada, no meio dos campos. Desapareceu, uma hora ou duas. Quando voltou já era quase noite. "Vamos gravar a Catarina". O Bóris meteu-se na pequena cabina, para o som da viola ficar isolado da voz. O Zeca, no meio do estúdio, sozinho e às escuras, cantou. Uma só vez. É essa que está no disco.
Nós, os outros, os privilegiados espectadores, estávamos na central técnica, quase todos a chorar incluindo o técnico francês. "Acham que é melhor eu cantar isto outra vez?"
"Não, Zeca, não. Está muito bem assim..." »
Não escapa à regra, sendo do melhor que se faz por portugueses, ter sido feito no estrangeiro. Editado em 1971, foi produzido pelo genial José Mário Branco e gravado por Gilles Sallé no Strawberrie Studio, em França.
É perfeito para ouvir num dia como este, quando recordamos as lutas dos trabalhadores e as conquistas de Abril e lamentamos a sua lenta diluição. Mas o Zeca está lá sempre a lembrar-nos que temos que lutar, que Abril vencerá!
Foi deste álbum que foi tocada, na Rádio Clube, a contra-senha da revolução, a famosa Grândola Vila Morena.
Deixo aqui este testemunho de alguém que não consegui identificar ainda, mas que esteve lá no momento da gravação da música "Chamava-se Catarina", homenagem a Catarina Eufémia, mártir do satrapismo fascista:
« Nascido para, como diz a cantiga, "abrir grandes janelas", o Zeca sempre suportou maio fechamento - quer o das ideias, quer o dos espaços.
Das duas vezes que foi a Paris gravar comigo, em 1971 ("Cantigas do Maio") e 1973 ("Venham mais cinco"), nunca ele escondeu quanto lhe desagradava e o indispunha a necessidade de ficar fechado no estúdio durante horas, e quanto ele não gostava nada de Paris nem do ambiente dos portugueses de Paris - hoje entendo como tinha razão.
Porque haveria de ser preciso fecharmo-nos, horas e horas a fio, na tensa clausura de um estúdio de gravações, se o objectivo era precisamente registar os grandes e puros espaços sonoros das suas melodias, a frescura densa da sua voz, a força simples e lírica das suas palavras? As máquinas! custava-lhe aceitar que a "limpeza" e a "verdade" do som só pudessem ser conseguidas, neste mundo sujo e atravancado, por meio das máquinas, das técnicas, do isolamento acústico. Custava.lhe aceitar que, para fazer chegar aos outros as coisas belas e simples que inventava, fosse preciso tanta guerra para reconquistar o silêncio, a página branca, o patamar vazio donde tudo tem que partir.
Assim, por entre mil episódios que atestam o que acabo de dizer, há esse - o da gravação do "Cantar Alentejano" ("Chamava-se Catarina... ") - que testemunhei aquando da gravação das "Cantigas do Maio", juntamente com a Zélia, o Fanhais, a Isabel Alves Costa, o técnico Gilles Sallé e, naturalmente, o violista Carlos Correia (Bóris). A opção de arranjo foi: só a viola, e a voz do Zeca. Sem rede.
O regime de gravações - tardes e noites - fez que, nesse principio de tarde, fosse a altura de gravar o "Cantar Alentejano", "Vamos a isto, Zeca?", ia eu dizendo, naturalmente preocupado com a factura do estúdio. "Não tens nada para ir metendo?", desconversava ele. Via-se que não estava pronto. "Queres ir metendo outras coisas? Faltam vozes no "Milho Verde" e no "Senhor Arcanjo"... E assim ia passando a tarde. "Está bem, vamos metendo outras vozes". Mas não se conseguia grande coisa. A alma dele - percebi depois - estava toda no Alentejo, nos olhos de Catarina Eufémia. E, como tantas vezes acontecia, andava no estúdio para cá e para lá, em passos nervosos, como o jovem leão na sua jaula.
Até que, já pela tardinha: "Eu vou até lá fora, olhar para as vacas" - o estúdio era numa quinta apalaçada, no meio dos campos. Desapareceu, uma hora ou duas. Quando voltou já era quase noite. "Vamos gravar a Catarina". O Bóris meteu-se na pequena cabina, para o som da viola ficar isolado da voz. O Zeca, no meio do estúdio, sozinho e às escuras, cantou. Uma só vez. É essa que está no disco.
Nós, os outros, os privilegiados espectadores, estávamos na central técnica, quase todos a chorar incluindo o técnico francês. "Acham que é melhor eu cantar isto outra vez?"
"Não, Zeca, não. Está muito bem assim..." »
1 comentário:
A autoria do testemunho, soube-o agora, é do grande José Mário Branco!
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