16 outubro, 2010

Cantando à chuva com os U2


Chegámos a Coimbra cansados e debaixo de um temporal. Por momentos vacilei, olhando as sapatilhas desfeitas, que quase entregaram a alma ao criador (neste caso, ao Sr. Chuck Taylor), algures entre Alfama e o Bairro Alto, e a roupa encharcada só de sair do comboio, e estive para abrir o papel onde dias antes tinha escrito “vendo bilhete u2 3 outubro”, aproveitando a provável presença de algum incauto que se tivesse aventurado sem ingresso. Mas tu não me deixaste. Nunca me deixas desistir de sonho nenhum, por mais banal que possa parecer. “One love / we get to share it / it leaves you baby / if you don’t care for it”, mas tu preocupaste-te e seguiste viagem, sozinha, para o Porto. Quantas vezes num casamento há apenas um bilhete para duas vontades?
E ali fiquei, antevendo uma penosa espera encharcado até aos ossos, não fosse como que por milagre deixar de chover a partir do momento em que apanhei o autocarro para as imediações do Calhabé. A partir daqui, 42000 pessoas podem testemunhar o que escrevo.
À longa espera nas filas e no estádio, seguiu-se a abertura dos Interpol. As expectativas eram altas. O barómetro social no qual o Facebook se tornou para uma alargada franja da população não me desmente – previa-se um concerto brutal e havia gente que considerava, mesmo, os U2 como um bónus, uma “banda de fecho”, da excelente actuação que os Interpol haveriam de proporcionar. O facto é que tudo isso culminou num chorrilho de barulhos que, no limite, aspirariam a um exercício fútil de revivalismo gasto do pop-pós-punk sombrio do início dos anos 80. Toadas de guitarra a encher compassos sem acentuação, bateria quadrada a abusar da tarola, baixo monocórdico, pose distante e pseudo-deprimida do vocalista, solos de uma corda, muito pouca melodia e som muito cansativo: o hype revivalista dos anos 80 em toda a sua inglória, ou a desesperada enésima tentativa de ressuscitar o Ian Curtis. A “banda de culto do alternativo” não fez ninguém vibrar ou saltar. Apenas ouvi comentários envergonhados e pouco emotivos no intervalo, a evidenciar o grande futuro da banda, a imensa energia em palco, e outras alarvidades que tais.
A lição foi dada peremptoriamente pelos senhores que se seguiram. Deu-me a sensação que os Interpol ficaram parados no tempo em que os U2 fizeram Boy ou October. Com a diferença que os irlandeses o faziam com muito mais paixão, coerência e qualidade. Isto, talvez, porque não se ligaram a nenhuma cena e souberam inovar, mais ou menos, de álbum para álbum, em busca de estilo e personalidade próprios. Como tal, a simplicidade dos primeiros álbuns já mostrava toda a química da banda e o desenvolvimento do seu som característico, ancorado principalmente na guitarra de The Edge, a usar mais do que a abusar do delay, e na voz sempre carismática do Bono, a dar relevo a mensagens sociais e políticas.
Conhecendo a carreira dos U2, é fácil refutar outro aluvião de opiniões avulsas, o daqueles que destilam bílis gratuitamente nos fóruns da Blitz, e que consideram os U2 como uma das bandas mais “overrated” da história, ou no bom português que eles desconhecem, uma banda sobrevalorizada. Decerto não seriam nascidos em 1991 ou não teriam idade suficiente para reconhecer a revolução que o álbum Achtung Baby operou na carreira dos U2 em particular e na música popular em geral. Era o início de uma era completamente nova, não apenas para a música mas também para a humanidade, que assistia ali talvez à maior abertura de espírito desde a Renascença. O Muro caíra, a URSS acabara e com ela, a Guerra Fria. O Planeta, de repente, ficou maior e mais unido. A Aldeia Global tinha acabado de construir as suas fundações nos despojos do Muro de Berlim. Foi nessa altura que os Pink Floyd passaram, literalmente, o testemunho musical que sobreviveu às trevas dos anos 80, e quem o recebeu foram os U2, muito bem acompanhados pelos Red Hot Chili Peppers, Pearl Jam, Smashing Pumpkins, Nirvana e muitos mais.
O Achtung Baby foi muito convenientemente gravado entre Berlim e Dublin, resultando das impressões de um périplo que a banda fez na reunificada capital alemã e no seu ambiente sombrio e underground, mas também contou com impressões de Marrocos. Contribuiu, aliás, com a parte de leão das músicas que se ouviram no concerto de Coimbra. Misterious Ways, Until the End of the World, One e (Even Better Than) The Real Thing, o que alias atesta bem a actualidade deste album passados 20 anos. Na altura, a maioria dos fâs ficaram profundamente desiludidos, visto que esperavam da banda uma certa continuidade com o Joshua Tree. Houve, de facto, uma grande divisão devida à mudança radical de estilo. Muitos divorciaram-se da banda mas outros, como eu, que não eram particularmente apreciadores, passaram a seguir muito mais de perto aquele fenómeno que acabara de despontar. É ainda hoje um dos meus álbuns favoritos de sempre.
Zooropa (1993) e Pop (1997) foram os álbuns que se seguiram. O primeiro muito impulsionado pela digressão ZooTv do Achtung, e com uma interessante interpretação do à altura moribundo Johnny Cash, e o segundo desbravando novos caminhos na fusão da componente electrónica com a sonoridade característica da banda. São álbuns memoráveis, mas subvalorizados depois das primeiras impressões. Os U2 continuavam na senda da reinvenção.
A fase das colectâneas e concertos e a eminência cada vez maior de Bono como figura de proa para a defesa dos Direitos Humanos em colaboração com a Amnistia Internacional, faziam prever que os U2 se tinham acomodado à sombra do sucesso, vivendo dos louros do passado. Mas eis que chega o All That You Can’t Leave Behind (2000), um álbum poderosíssimo e extremamente bem produzido, ao qual muitos críticos colaram o rótulo de “mainstream”. Antes pelo contrário, o All That é a prova de um grau superior de maturidade da banda, emotivo, significativo, equilibrado, polido, melódico, competente. Mas mais uma vez incompreendido pelos abutres do sucesso. Se o Achtung era “demasiado radical”, o Zooropa e o Pop eram “flops”, “estranhos”, “desinspirados”, já o All That era “mainstream”, “demasiado comercial”, “convencional”. Em que ficamos? Por mim, sinto um gozo imenso em estar desalinhado com a crítica massiva, pois para eles o No Line on the Horizon (2009) é um dos melhores álbuns da carreira da banda e eu acho-o enfadonho, e nem sequer me vou referir ao How to Dismantle na Atomic Bomb (2004).
Tudo isto para explicar que, ao contrário do que muitos arrotadores de postas de pescada afirmam, os U2 têm mais mérito na sua carreira do que propriamente promoção da enorme máquina editorial que de facto existe atrás deles. A mesma máquina que lhes colou os Interpol nas aberturas, tentando relançar o já moribundo hype do revivalismo dos 80’s vestido de alternativo a um público mais vasto, na esperança que talvez o consigam comer, pois muitos dos que ouvem U2 também passaram pela fase dos Joy Division, New Order, Echo & The Bunnymen e produtos similares. Mas os tempos são outros. São tempos ávidos de inventores mais do que reinventores, como os Arcade Fire, que lançaram novos dados na música mas que, ultimamente, insistem aparentemente em não mais que se reinventarem a eles próprios. São tempos que precisam urgentemente de novos rumos, como aquele que os U2 abriram com o Achtung Baby, mesmo correndo o risco de perderem algum mercado.
Felizmente os U2 não precisam da crítica para viverem, pois vivem do seu público, que lhes reconhece uma fantástica capacidade de produzir boa música.

(Segue-se, brevemente, novo post com as impressões do concerto de 3 de Outubro, em Coimbra.)

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