Há palavras que nos fazem surgir imediatamente uma música na memória, e contextos que, em consequência, actualizam a percepção que temos dessa música. Estranhas coincidências que nos põem a matutar, como eu fiz há dias, num transfer entre o tenebroso aeroporto de Stansted e Londres, ao passar pela placa da auto-estrada que indicava a saída para o subúrbio de Harlow.
Quando se fala em Peter Gabriel, é comum lembrarmos-nos do seu compromisso com as causas humanitárias, seja pelo apoio editorial à indústria musical dos países em desenvolvimento, através da Real World Studios, com responsabilidades directas na notoriedade de músicos como Nusrat Fateh Ali Khan e Youssou N'Dour, seja em projectos de denúncia da violação dos direitos humanos, com o The Hub, ou em frequentes colaborações com a Amnistia Internacional.
A sua participação nesta área começou pouco depois de ter iniciado a sua carreira a solo, mas a mentalidade e atitude já estavam presentes antes, como pedra de roseta dos Genesis da primeira metade dos anos 70. Exemplo: no álbum Foxtrot (1972), a música "Get 'em out by friday" fala-nos de um dantesco cenário de especulação imobiliária, que começa com a compra, exactamente em Harlow, de uma rua inteira de habitações ao senhorio, para construir um bloco de apartamentos com aquecimento central. O senhorio vai subindo a renda para obrigar os inquilinos a sair, o que eventualmente acontece, deixando o espaço livre para construir o tal prédio. Isto espelha a realidade britânica nos anos 60 e 70. Mas depois, há um salto para o futuro - em 2012! - onde, além de se repetir o processo de terrorismo imobiliário, surge uma comunicação de uma empresa - a Genetic Control - que refere que será imposta uma restrição na altura de todos os seres humanos. Por trás disto está o interesse imobiliário da empresa, que comprou uma grande quantidade de terrenos e pretende construir apartamentos com metade da altura, para que caiba o dobro dos inquilinos.
Que jeito isto daria a empresas como a Ryanair, onde já se é tratado como gado. Se todos fossemos pequenos anõezinhos, os Boeing 737 podiam levar mais do dobro dos passageiros. Baniriam de uma vez as inúteis cadeiras e fariam aeronaves double-decker, como os autocarros, com varões para nos segurarmos durante a turbulência, e máquinas de venda automática, dispensando assim o trabalho dos feirantes... perdão... assistentes de bordo.
Juro que, ao passar ao largo de Harlow, me soaram os acordes introdutórios do teclado do Banks para o "Get 'em out...". E, por mais imbuída do humor irónico do Gabriel que seja esta música, não deixa de ser uma chamada de atenção mais actual que nunca. Em 1972 estava-se longe de imaginar sequer que o genoma humano seria todo conhecido um dia. Hoje, é um dado adquirido. Como o é a tecnologia para aceder à informação genética de cada um de nós, avaliando, por exemplo, a probabilidade de virmos a sofrer de uma doença hereditária debilitante, com as consequências lógicas para o mercado de trabalho e segurador. Numa altura em que os interesses dos "mercados" se camuflam com a sobrecasaca da austeridade, comprometendo a dotação dos mais elementares direitos humanos, o uso encapotado da ciência ao serviço da pilhagem social parece-me uma ameaça mais que credível. É apenas uma forma de nos fazer sentir mais pequeninos, como na música dos Genesis.